sábado, 2 de abril de 2011

A médica e o monstro...

O meu problema é que sou médica e paciente, ao mesmo tempo.

sábado, 14 de março de 2009

Forjando os Diários de Breuer ou Ana O., A Musa Da Psicanálise : Parte 4, Diagnosticados

Era necessário que ele respondesse a altura àquela provocação? Não, na verdade, até agradava-me aquela intransigência de menina. Encarei-a de novo, em desafio, de sobrancelhas arqueadas, sem dizer uma palavra... Voltei a escrever, fingindo concentração.
Foi aí q ela resolveu levantar-se. Andou na minha direção, lânguida e parou. Fumasse eu charutos, como o outro, teria apanhado um deles nesse exato momento.
Sentou de frente para mim, largando os lindos bracinhos sobre a mesa... _Doutor, a questão é a seguinte: Sabes que, quando você me olha, dessa maneira, não respondo por mim...
Engoli a seco. Seco que estava... De novo, será que precisaria responder- lhe? Quem fala muito, perde todo o resto... E de fato, decidi que não perderia nem mais um instante. Fechei as janelas. Passei a tranca na porta. Entendi que resolveria ali mesmo, no consultório, a tal questão.

Forjando os Diários de Breuer ou Ana O., A Musa Da Psicanálise : Parte 3, Kartasis

Da sua vida, apegara-se aos traumas. Dormia a eles apegada. Dos nervos esperava apenas a desordem. Dos sentimentos bastava-lhe a superficialidade.
Agradava-lhe, também, sair por aí vestindo todos os clichês que encontrava pela frente. Pra sentir-se uma mulher.
Numa de suas crises, vestira as faces de Lilith. Vira até os demônios a sua volta: _Estou suja, doutor! Se me tocares, pode muito bem contaminar- se! Dizia-me chorosa, certa de seu poder de contagio...
Ameaçou rasgar as vestes. Pensei: Se a bela dama, aqui em frente, de fato rasgar suas vestes, será porque estas já não lhe servem.
E talvez até aproveitasse para dar uma olhada, já quase convencido da imensa vantagem de ser psicanalista nessa Viena excessivamente trajada.
Uma pena, não foi dessa vez. Mas contribuiu um bocado para uma maior intimidade na relação médico/paciente.

Nua, porém vestida, era assim que agora ela se mostrava a mim.. E seu caso me parecia cada vez mais interessante. Será que existia mesmo outra por debaixo dessa pele, como ela gostava de dizer? Ana eram muitas?
Não, eu não saberia dizer... No máximo poderia dizer o que encontraria por debaixo das vestes. Seios de menina, as pernas ágeis, o umbigo pequenino enfeitando o ventre... Tudo muito belo.
Interessava-me cada vez mais a anatomia, cada vez menos os aspectos psicológicos...
À luz do consultório, parecia-me ainda mais bonita. E quanta vitalidade tinha essa menina! De sobra para colocar em prática todas as histórias que freneticamente inventava.


Dizia a mim que, a essa altura, mal se lembrava de quem era. Entra transe, sai transe, ela no fundo é uma atriz. Poderia muito bem, vestir também as faces de Vênus, em um dos números de seu teatro privado. Encher com seu perfume essa sala.
Já podia até imaginar o quanto a personagem lhe cairia bem... Tanto que, de tanto imaginar, minha concentração ficara cada vez mais escassa.
Nessa altura da sessão, apenas dizia: _ Conte mais minha querida!
E ela falava e falava...Pensei comigo: quem muito fala, perde todo o resto.
E como falava! Quanto talento desperdiçado em falatórios intermináveis! Impossível acompanhá-la...
Aproveitei uma de suas pausas para espiá-la por cima da caderneta. Vi que ela também olhara, mas desta vez não corou como pedia o papel... Apenas disse: _ Você me fez esquecer o texto, doutor...

Forjando os Diários de Breuer ou Ana O., A Musa Da Psicanálise : Parte 2, Estudando o Caso

Ela obedecia aos comandos com naturalidade. Deixava-se conduzir. Apesar de sempre atenta. Reparei que era eu quem me perdia...
Toda aquela sensibilidade, sem governo, espalhada entre as quatro paredes do meu consultório. Não era se estranhar que, às vezes, uma ou outra de suas dramáticas confissões, me atingissem em cheio.
A menina também chorava além da conta. Era necessária alguma paciência.
Até que chegássemos ao cerne de seu passatempo favorito: brincava de ser atriz. Se bem que suas personagens eram fugazes, sempre terminava atirando os papéis ao lixo.
Muitas vezes confessara, em transe, a inspiração de muitas histórias e personagens, até que despertava com se não lembrasse... _ Ora doutor, como foi? Onde? Eu não poderia...
Suas faces coravam. Que bela ficava! Será que coravam mesmo? Só sei que muito me divertia ver e ouvi-la dissimular.

Forjando os Diários de Breuer ou Ana O., A Musa Da Psicanálise : Parte 1, O Primeiro Contato

Tivesse o doutor aqui menos sangue em suas veias, teria resistido a tentação.. Ou não? Ela entrou na sala, era sua primeira sessão. Olhava para os lados. Fazia o reconhecimento do local, até que avistou o divã.
Primeiro sentou-se. Não satisfeita, deitou-se. Assim, sem nenhum convite. Sentindo-se inteiramente a vontade.
Notei alguma carne descoberta, sob as meias de seda. Os pequeninos tornozelos estavam à mostra. Primeiro sinal da minha fragilidade.
_ Doutor, o senhor precisa ajudar-me! Todos os dias, doutor, anseio pela minha morte!
Ela disse morte? Caso grave... Sim, eu precisava ajudá-la mas ...E depois? Quem é que me ajudaria? Nenhuma resposta, obviamente.
E ela continuava como quem diz: _ Vamos comigo ao inferno, doutor? Não quero ir sozinha...
Ao que eu respondia: _ Ao inferno? Pois não!
Ora, eu não era nenhum insensível, resolvi ajudar a dama.
Funciona assim minha querida: Você se deita. Isso! Do jeito em que está. Eu evito olhar-te e, a senhora, digo, a senhorita, olha para aquela parede. Isso mesmo, para a parede.
Comecemos, então! Eu dizia: _ Quero que olhe para o ponto e se concentre. Vai sentir alguma sonolência... Não tenha medo. Confie em mim e continue...
_ Confio em ti, doutor.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Vietnã

Mulher, como te chamas? - Não sei.
Quando nasceste, tua origem? - Não sei.
Por que cavaste um buraco na terra? - Não sei.
Há quanto tempo estás aqui escondida? - Não sei.
Por que mordeste o meu anular? - Não sei.
Sabes, não te faremos mal nenhum. - Não sei.
De que lado estás? - Não sei.
É tempo de guerra, tens de escolher. - Não sei.
Existe ainda a tua aldeia? - Não sei.
E estas criancas, são tuas? - Sim.

WISLAWA SZYMBORSKA

Tradução: Ana Cristina César

quarta-feira, 4 de março de 2009

Chapeuzinho Vermelho - Parte 3 - Enquanto vovó descansava...

(Avista a casa da vó...)

Enfim, em seu destino. Até que recuperara o tempo perdido no caminho. E estava em forma. E que forma! Passos largos e rápidos. Sem perder a graça. Jamais...

(Pára em frente à porta, lembra-se das marcas no pescoço, o decote... Fecha o casaco antes de entrar na casa. Botão por botão com alguma prática...)

_ Com licença... Estou entrando!
_ É a minha neta?
_ Sou eu, vó? Tudo bem com senhora?
_ Você demorou? Esqueceu o caminho, foi?
_ É, eu confundi uma rua. Faz tempo que eu não venho, não é mesmo? Mas eu trouxe a tua comida. Está com fome?
_ Um pouco.
_ Então eu vou esquentar a sopa... Melhor esperar no quarto, vó. Eu levo assim que estiver quente. Enquanto isso você assiste tv...
_ Então me ajuda aqui, menina...

( Velha pálida e corcunda que era.Coluna dolorida, pernas fracas, braços trêmulos, olhos fundos...Tudo gasto. Demorava uma eternidade para cruzar o caminho do sofá até a poltrona mais próxima. Imaginem quanto tempo não levaria para chegar até o quarto?:Chapeuzinho, impaciente que era, tratara de pegar a vó pelo braço. Vai conduzindo a velha pelo corredor com alguma má vontade...)_

_ Quase não dormi essa noite, senti uma dor no peito...
_ Aqui, pega meu braço... Isso! Vamos.
_ Senti umas palpitações...
_...


Pronto. A velha já está na cama. A sopa quente. Só faltava o toque final (Abre a caixa de remédios...). E aquele era dos bons. Relaxante paca. Vovó finalmente poderia repor o sono acumulado. Quase uma boa ação. Pena que Ele não via, esquecera-se...


_ Menina! Cadê você?
_ Só um minuto, vó. (Equilibra as tigelas na bandeja, rumo ao quarto...)

(...)

E o telefone dele? Pega o celular. Menu, agenda, letra L. Achei!

_ Alô!
_ Alô! Sou eu...
_ Olha, e não é que ela ligou!
_ Já estou na minha avó.
_ É, você me falou que iria...
_ Então, você não quer vir aqui?
_ Pra fazer o q, exatamente?
_ Que pergunta! Cuidar da minha avó é que não.
_ (Rindo...) É, nem era minha intenção...
_ Olha, ela está dormindo profundamente. Acabou de comer. Vem agora!
_ Você dopou a tua vó?
_ Você vai vir ou não?
_ Lógico que eu vou... Chego rápido!

Rápido... Até aparece. Rápido mesmo fora o jeito que a avó apagou. Mal conseguira terminar a sopa. Babou no prato. Teve que limpá-la. Passou o guardanapo de pano em volta da boca murcha. No pescoço. Por pouco não suja camisola. Deitou a velha na cama, cabeça para o lado... Se soubesse que seria tão fácil... Só esperava que a ela não acordasse com a mesma facilidade que dormira. Aí sim a tarde seria perfeita...

(Ouve a campainha...) Deve ser ele!

_ Até que enfim? Por que a demora?
_ Só 15 minutinhos, oras. Isso tudo é saudades?
_ Não é isso. Imagina, se a minha avó acorda antes da hora, pega gente aqui...
_ Que nada. Estou ouvindo o ronco dela daqui da sala. Relaxa...
_ Vem aqui comigo, vem...

(De mãos dadas com o lobo... E que mãos grandes ele tinha... Para que serviriam? Aqueles olhos enormes, famintos... Para que serviriam braços, pernas, a boca sedenta? O seu enorme... Ora, quanta pergunta! Ela sabia muito bem para o que serviriam...)

(Algumas horas depois...)

._ Eu vou indo linda, antes que a tua avó acorde.
_ Ficou com medo?
_ Melhor se precaver, né? Se ela acordar e me ver aqui...
_ É, vai... Mas olha... Ah, esquece, amanhã eu falo.
_ Ok, dá um beijo! Amanhã eu volto tá... E olha, não vai ser pra ver a tua avó.
_ Eu imagino que não...
_ Até porque, pelo jeito que ela está dormindo, parece que não vai haver amanhã para ela...
_ Imagina, essa velha não morre. Mais fácil ela me enterrar... (Ouve o celular tocando...) Minha mãe! Vou atender. (Faz graça...) O que você acha de eu dizer que pra ela que eu estou atrasada porque o lobo mal me engoliu?
_ Lobo mal? Imagine, eu não faço mal a ninguém. Mais fácil você me engolir...

(Sai minutos depois do lobo. Não seriam vistos juntos. Pega o casaco vermelho. Volta pra casa de alma e cara lavada...)